A transação na reclamação trabalhista

Autor: José Celso Martins*

Fonte: Revista Justilex – Ano V – Nº 51 – Março de 2006 – pág. 58

A utilização do procedimento arbitral para solução de questões trabalhistas tem sido rejeitada em algumas decisões proferidas pelo Poder Judiciário. Nestas decisões, em sua maioria, há a alegação de indisponibilidade do direito por parte do empregado ou de que estas questões são de natureza pública. Tal posição nos parece juridicamente insustentável, como tentaremos demonstrar até o final do presente artigo.         

O direito trabalhista, sob sua ótica substantiva, é indisponível no momento de sua contratação, assim como em toda vigência do contrato de trabalho, uma vez que as questões versadas em uma relação de emprego são, muitas vezes, de ordem pública.

No entanto, encerrado o contrato de trabalho, toda e qualquer lesão ao direito anteriormente indisponível e protegido com características de interesse público, será transformada em indenização de natureza patrimonial. Assim, é certo que uma ação trabalhista tem por objeto o recebimento de direitos que não foram observados e obrigações que não foram cumpridas em uma relação de emprego na vigência de um contrato de trabalho. Referida ação tem natureza indenizatória e patrimonial e fica sujeita às regras e procedimentos adotados para as medidas judiciais dessa natureza.

A arbitragem é procedimento que, para sua utilização, necessita de livre contratação, porém, manifestada a disposição na utilização do procedimento, o que pode ocorrer por meio de cláusula compromissória ou termo de compromisso, o seu resultado, a rigor da Lei 9.307, vinculará as partes à decisão e fará coisa julgada de seu objeto.

Lembro que o vício de consentimento no momento da contratação da arbitragem poderá ser objeto de discussão, visto que a arbitragem, como manifestação de vontade, não poderá decorrer de erro, dolo ou vício de qualquer natureza. No entanto, não existindo qualquer vício e sendo legítima a opção pelo procedimento, impossível se admitir que o objeto de uma reclamação trabalhista, salvo em algumas raras exceções, seja direito indisponível.

A ação trabalhista está sujeita às condições processuais previstas na CLT em seu artigo 625 e seguintes. Tal ação atende às regras para as medidas judiciais de natureza patrimonial disponível, portanto está sujeita a prescrição, transação, confissão, renúncia e revelia.

Os direitos indisponíveis ao trabalhador têm salvaguarda em medidas de natureza pública que deverão ser exercidas pelo Ministério do Trabalho (por meio de suas delegacias regionais), pelo Ministério Público do Trabalho e pelos sindicatos. 

As medidas que demonstram ser o direito do trabalho direito indisponível revestem-se de características peculiares como a fiscalização, atividades próprias a serem exercidas pelo Poder Público e que deverão ser praticadas na vigência do contrato de trabalho dentro da empresa empregadora, com o intuito de preservar o direito de natureza pública indisponível versado na Constituição Federal e na CLT, dentre eles, medicina e segurança do trabalho, jornada de trabalho, estabilidade da gestante, etc.

Quando a questão tem interesse público, como os crimes contra a pessoa ou contra o patrimônio, questões ambientais ou quando há o interesse de menores ou incapazes em determinada ação, há a intervenção do Estado, sob a égide da iniciativa do Ministério Público. Em questões dessa natureza, inquestionavelmente estamos diante do interesse público e de direitos indisponíveis à sociedade e ao cidadão em particular.

Tal situação não se verifica, nem se conhece, na iniciativa de uma ação trabalhista que somente ocorre pelo interesse manifesto do empregado. Frise-se, nessa oportunidade, que a interposição de ação não será feita por representação pública, mas sim por representação privada, sujeitando-se o empregado às regras dos contratos privados. O procedimento a ser adotado também terá as características de uma ação patrimonial comum indenizatória com o cumprimento de pagamento pelo serviço prestado ao profissional contratado ou com o pagamento ao sindicato prestador do serviço.

Os direitos trabalhistas, como regra, são objetos de ação que vem regulamentada por procedimentos sumaríssimo e sumário previstos no art. 625 e segs. da CLT. A tutela jurisdicional é prestada, a rigor, por iniciativa do próprio trabalhador que, em medida judicial, recebe a denominação de Reclamante. Sua representação poderá ser feita pessoalmente, por meio de advogado constituído ou por advogado de sindicatos.

O direito de ação é de iniciativa do empregado e se este não for exercido, não haverá nenhuma ingerência do Estado nesse sentido. Até mesmo a renúncia quanto ao ingresso da ação pode ocorrer sem que a questão se torne de interesse público.

A solução dos litígios trabalhistas pela via da conciliação é regra e exercício comum para a pacificação de litígios dessa natureza. Mais de 40% das reclamações trabalhistas são pacificadas pela Justiça do Trabalho por meio da transação resultado da conciliação das partes. A conciliação é admitida de forma reiterada a rigor do cumprimento da CLT, obrigando o magistrado na sua tentativa por pelo menos duas vezes (antes da apresentação de defesa e no final da instrução). Tal previsão nos remete à transação do direito objeto da ação e, portanto, admite a renúncia e a negociação dos direitos ali pleiteados.

Questões graves como as relacionadas ao trabalho escravo já foram resolvidas, na justiça trabalhista, no campo da transação. Temos exemplos registrados desse fato na imprensa onde soubemos que um fazendeiro da Bahia indenizou 123 trabalhadores por trabalho escravo. (Fonte: Revista Consultor Jurídico, 15/11/04). A mesma revista registra que a “Vara de Redenção fecha primeiro acordo em caso de trabalho escravo”. Portanto, se em questões com essa repercussão internacional de interesse social admite-se a transação, impossível pensar que as questões trabalhistas, que comumente versam em uma ação, sejam de natureza pública e seja direito indisponível.

Em suma, a ação trabalhista traz, em seu bojo, matéria patrimonial que é disponível ao seu titular, visto que o seu resultado será indenizatório com o direito de incorporação de valores ao patrimônio de seu autor. Muitas decisões judiciais confirmam esta visão, conforme transcrevemos a seguir:

CC, art. 1035 – É disponível o direito sobre o qual as partes podem transigir. “Mesmo tratando-se de créditos de natureza alimentar é possível a transação, ainda que somente no que concerne ao ‘quantum’ devido”. (TRT 2ª Região – 1ª Vara do Trabalho de Mauá – Processo n. 1186/2003 - Juiz Sérgio Roberto Rodrigues – 27/08/2003);

“A transação produz entre as partes o efeito de coisa julgada (art. 1030 do CC/1916), preliminar que, por todo o exposto, foi acolhida com propriedade e acerto pelo juízo “a quo”, até porque o pedido inicial não reflete qualquer verba correspondente a direito indisponível, pelo contrário, diz respeito a títulos patrimoniais, à que se destina o artigo 1º da Lei 9.307/96 quando faculta a eleição de foro arbitral” (Acórdão n. 20040026617 – Processo TRT/SP n. 01596200100302002 – RO – 03ª Vara do Trabalho de São Paulo - Juíza Relatora Catia Lungov – 02/02/2004);

“No que tange à disponibilidade dos direitos, tenho para mim que aqueles oriundos de relação de trabalho, embora sejam de ordem pública, são suscetíveis de transação, sendo esta, inclusive, comum no âmbito das lides trabalhistas. De outra parte, a composição das partes feita por órgãos arbitrais possibilita a resolução do caso sem que recorra à Justiça do Trabalho, o que é vantajoso para empregados e empregadores”;

“...entende esse Juízo que não é obrigação, e sim, faculdade do trabalhador submeter a demanda à Comissão de Conciliação prévia antes de eleger árbitros ou de recorrer à Justiça do Trabalho. A finalidade dessa Comissão é justamente a conciliação prévia, a qual restou, igualmente, alcançada no tribunal de Arbitragem, não ocasionando prejuízo as partes. Em não havendo prejuízos não se decreta a nulidade”. (TRT – 2ª Região – 14ª Vara do Trabalho de São Paulo – Processo n. 2604/01 - Juiz Maurílio de Paiva Dias – 30/11/2001);

Nesse passo, fundamentar decisões trabalhistas sob a égide da coisa pública é faltar com respaldo legal processual que o justifique. O tratamento dispensado pelo legislador e o espírito de pacificação das questões não encontram ressonância nesse tratamento.                 

Dessa forma, o procedimento arbitral, quando livre e espontaneamente contratado, é válido e deverá ter sua decisão mantida a rigor do cumprimento da lei que instituiu o modelo processual, sob pena de faltarmos com o cumprimento da lei e provocarmos a falta de garantia jurídica necessária para se promover a pacificação social. 

José Celso Martins é advogado, mestre em Direito Político e Econômico e pós-graduado em Direito empresarial pela Universidade Mackenzie; contador, pedagogo e professor da Universidade Metodista de São Paulo; fundador e presidente do TASP – Tribunal Arbitral de São Paulo; autor do livro “Arbitragem, mediação e conflitos coletivos do trabalho”.